O poeta sem voz

Certa vez, ouvi falar que o poeta sente e carrega a dor do mundo. Ele percebe as coisas ao seu redor com uma sensibilidade diferente da maioria das pessoas. Ele enxerga com a sua alma. Dois casos me chamaram a atenção durante essa semana e me fizeram refletir sobre a figura do poeta: O lançamento do novo clipe de Thalles Roberto, um famoso cantor de música “gospel”, e o lançamento do filme que conta a história de Renato Russo e a sua Legião Urbana.

A música de Thalles se chama “Filho Meu” e utiliza uma linguagem pouco usual no meio cristão. Apesar de estar sendo considerada herética por muitos, eu não vou discutir a sua teologia e nem o aspecto comercial da coisa. Deixarei isso para os teólogos chatos de plantão – os legais que quiserem também. Na minha opinião, Thalles é um artista nato enlatado pelo sistema. Não sou fã da sua música, mas reconheço o prazer que ele demonstra ao expressar, de forma particular, sua verdade através de suas canções. Já escrevi em outra ocasião sobre a incompatibilidade de ser um artista dentro da igreja cristã. Infelizmente, muitos paradigmas ainda afetam essa questão e Thalles é, ao mesmo tempo, vítima e culpado dessa relação. Vítima porque talvez não se sinta livre para ser quem é, e culpado porque para ter alguma voz tem que se adequar e entrar no “esquema” (virar um pastor, por exemplo). O verdadeiro artista não impõe limites para a sua natureza, e aí já podemos encontrar um ponto de choque. Ser um artista associado a uma religião é muito complicado. Como, em meio às certezas de alguns princípios e ensinamentos, podemos expressar uma arte verdadeira, que por definição não pode ter uma só interpretação? O meu intuito com esse texto é refletir sobre a voz do poeta e a sua identidade.

Na última semana estreou um filme que conta a história de Renato Russo, vocalista da banda Legião Urbana. Renato foi um dos maiores poetas dos anos 80-90 e, queiram ou não, a sua arte alcançou e mobilizou milhares de pessoas por todo o país. Ele pode até não ser o melhor, mas foi a figura que encontrei para tentar traçar o perfil de um poeta.

O poeta não é o dono da razão. Ele põe pra fora coisas boas e coisas ruins, mas entende o ser humano profundamente e ajuda as pessoas a olharem para dentro de si, abrindo o seu mundo interior. Alguns deles tem a capacidade quase patológica de sentir as dores do mundo. Na música “Via Láctea”, Renato canta uma frase que ilustra bem essa condição:

“Queria ser como os outros e rir das desgraças da vida ou fingir estar sempre bem. Ver a leveza das coisas com humor, mas não me diga isso.”

O poeta, assim como um profeta, por muitas vezes é um grito vivo que anda por aí. Em outra canção, ele canta:

“Dissestes que se tua voz tivesse força igual à imensa dor que sentes, teu grito acordaria não só a tua casa mas a vizinhança inteira…”

Essa frase mostra que o poder da arte de um poeta está naquilo que ele sente, naquilo que ele acredita de verdade. Não pode ser uma coisa enlatada, fabricada para alcançar um objetivo. Quando a música (ou qualquer arte) tem um objetivo definido que não seja a mais pura necessidade de seu autor se expressar, ela perde a questão essencial que a define como arte e se torna um produto enlatado. Acredito que o dilema em relação a figura do Thalles é essa. Ele não se define nem como artista e nem como um “pastor”. Sambando em cima desse muro, fica difícil entender o que ele está produzindo.

Observada essa questão, percebo que é realmente desafiador transitar nessa esfera. Falo por experiência própria. Porém, uma coisa tenho aprendido e me esforçado para fazer. Apesar de todos os defeitos do ser humano, de todas as fraquezas e pecados, o artista não deve tentar enganar a si próprio. Ninguém é unanimidade e vai conseguir agradar todo mundo. Portanto, tentar agradar a todos é um equivoco. Aqueles que hoje gostam, amanhã não gostarão mais. Todos nós estamos em metamorfose o tempo todo e é normal ocorrerem essas divergências com o tempo. O artista só abranda os seus demônios quando libera a sua arte. Então, por mais que isso pareça egoísmo (e não é), ele só tem a obrigação de agradar uma única pessoa: A si próprio.